Era final da década de noventa. Não me lembro ao certo. Noventa e sete ou oito talvez. Ali, uma comunidade do bairro de Castelo Branco, na cidade do Salvador, não diferente de outras tantas pelo país, adolescentes entre 15 e 16 anos, com tempo livre e usavam-no de várias formas. Uma delas: ouvir Racionais Mc’s num mini sytem qualquer.
A música: Mágico de Oz, a qual dizia assim: “Comecei a usar pra esquecer dos problemas. Fugi de Casa. Meu pai chegava bêbado e me batia muito. Eu queria sair desta vida. O meu sonho? Estudar, ter uma casa, uma família [...]”. Pronto. Está pintado o quadro.
Alguns anos se passaram e, então, estamos no comecinho da segunda década, do segundo milênio. Era uma sexta-feira, também, Salvador. A manhã estava chuvosa e fazia muito frio na cidade. Após engarrafamentos e longas horas em pé no trajeto, acabei por chegar ao Salvador card. Nem Iguatemi, nem Comércio. Lapa.
Tudo ocorria aparentemente normal, até que aquela imagem me fisgou. Ela queria dizer algo e me disse mais do que muitos dos textos teóricos abstratos que já tinha lido na “minha escolinha de terceiro grau”. Aquela imagem veio atravessada por uma fala. Fala de criança. Fala de menino. Essa que me arrastou pra realidade subitamente, sem pedir permissão. Foi curta (não grossa), mas sincera. E ele disse: “Ô, tio me dá um dinheiro pr’eu tomar um café”. Não hesitei e levei a mão ao bolso. Depois disso, abri a mochila e ele me guiava: “Aqui tem, ó, tio...”. E lá fui eu...
Seu café: salgado de milho. Falei, então: isso não dá sangue não, rapaz. Como resposta, ele disse: “Então você escolhe, tio”. Mas não tinha nada com "sustânça" ali. Apenas guloseimas.
Vi um biscoito recheado e disse a moça: dá esse a ele, por favor. Ele agradeceu e saiu. As pessoas olhavam-no de formas múltiplas: medo, pena, nojo. Ele não foi longe. E ali mesmo, próximo à fila do ônibus, deitou-se em sua cama, nem tão macia: alguns papelões e um pedaço de colchão sem forro.
Suas poucas roupas, um capote meio sujo e uma calça, não davam conta da frieza e ele estremecia. Deitado, mordia o biscoito com os olhos fechados como se estivesse saboreando-o. As pessoas continuavam a olhá-lo com aquele olhar de “Ô! coitado!”. Não resisti à cena e fui até ele: E aí, rapaz, você é daqui mesmo ou do interior? Ele me respondeu: “Sou daqui”. Qual bairro?, pergunto. “São Cristovão”, ele responde. Sempre curto nas palavras, parecia não querer conversa. Ainda assim, fiz mais algumas perguntas: Qual seu nome? E quantos anos você tem? “Edcarlos. Onze”. Nesse momento, aqueles olhares também se voltavam pra mim.
Por que saiu de casa?, perguntei. E a resposta veio como uma lâmina: “A cachaça de meu pai”. Fiz ainda uma última pergunta e essa me desestruturou completamente: E sua mãe? “Não tenho mãe...”. Sem graça, fui saindo de mansinho e ele continuava lá, encolhido, degustando aquele biscoito seco, como se fosse a melhor coisa do mundo.
Fiquei pensativo o resto dia. E ficava mais abalado, quando lembrava que aquele era apenas um caso dentre milhões em todo o país. Na minha impotência diante de tal situação no momento, me limitei a escrever essas poucas linhas como forma de lembrar daquela criança, mais um filho da pátria que o pariu.
Salvador, 21 de maio de 2011
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